A origem da expressão “modelo multiportas de resolução de conflitos” remonta ao ano de 1976, quando Frank Sander, professor emérito da Faculdade de Direito de Harvard, apresentou em uma conferência (Pound Conference) a palestra denominada “Variedades de processamento de conflitos”. Em tal ocasião, o professor expôs a ideia de um “centro abrangente de justiça”, em que se buscaria, para cada tipo de conflito, o meio mais adequado de solução [1].
A ideia inicial consistia em um local de triagem para onde as pessoas levam seus conflitos, recebem orientações por diversos profissionais, e optam pelo melhor método de resolução do problema específico, seja por meio de decisão adjudicada ou consensual. Em poucas palavras, o Tribunal Multiportas “é um mecanismo para encaminhar os conflitos ao fórum mais apropriado para sua resolução” [2].
No Brasil, o fomento à autocomposição, sabe-se, não foi inaugurado pelo CPC/2015. Antes, já havia um movimento de valorização dos chamados meios alternativos (rectius: adequados) de composição de litígios [3]. A grande “virada” é, justamente, a superação da premissa de que a heterocomposição judicial é a melhor e principal forma de resolver conflitos — e tudo fora desse modelo são métodos de menor importância e eficácia. No modelo multiportas, não há, portanto, hierarquia entre a resolução consensual ou impositiva, devendo se buscar o meio mais aderente ao caso a ser resolvido.
A efetiva participação das partes na resolução dos conflitos remete também à democratização do processo, sob os influxos do Estado Constitucional [4]. Por consistir a participação em elemento essencial do conceito de democracia, as pessoas deixam a posição de meras destinatárias das decisões estatais para desempenharem também o papel de agentes participativos na solução do conflito [5].
Assim, no sistema processual brasileiro, interligam-se os conceitos de sistema multiportas, princípio da cooperação e contraditório substancial (artigos 3º, 6º, 9º e 10 do CPC), pois todos pressupõem uma maior participação das partes na resolução do litígio, com fomento ao diálogo paritário entre todos os sujeitos processuais [6].
No modelo multiportas, os métodos de resolução de conflitos caminham lado a lado, razão pela qual não há oposição entre a justiça contenciosa versus a coexistencial. Pelo contrário, deve-se verificar qual delas amolda-se para a mais completa solução do problema. Reconhece-se o direito à solução do conflito, concepção muito mais ampla do que a ideia de bater as portas do Poder Judiciário e observar as garantias processuais. Nas palavras de Kazuo Watanabe [7]:
Pode-se afirmar assim, sem exagero, que os meios consensuais de solução de conflitos fazem parte do amplo e substancial conceito de acesso à justiça, como critérios mais apropriados do que a sentença, em certas situações, pela possibilidade de adequação da solução à peculiaridade do conflito, à sua natureza diferenciada, às condições e necessidades especiais das partes envolvidas.
De fato, nas relações duradouras em que surja um conflito, a “justiça coexistencial” busca “remendar” aquela situação de ruptura ou tensão, com vistas a preservar a relação e a convivência pacífica. A justiça contenciosa, nesses casos, não conseguiria atingir esse objetivo, pois busca resolver o erro e, por isso, olha para trás; a justiça coexistencial olha para o futuro a fim de manter a convivência [8].
Emblemáticos são os conflitos que envolvem, por exemplo, questões de família, vizinhança, empresário e o fornecedor. Trata-se de relações que existiam antes do conflito e, principalmente, que se pretende preservar para o futuro. Para tanto, a busca por uma solução consensual se mostra de grande importância; a decisão adjudicada, por sua vez, pode trazer consequências ainda mais danosas a tais relações.
Além da ideia de preservação de uma relação para o futuro, a resolução consensual traz consigo também a possibilidade de maior aceitação do resultado que foi construído pelas próprias partes — com ou sem fomento de um terceiro (mediador ou conciliador). Não por outra razão, inclusive, já se reconhecem as vantagens e a economia dos meios consensuais com a Fazenda Pública [9].
Para alcançar-se a solução consensual, ganha relevo o reforço da paridade e do diálogo processual efetivo. Não se pode negar, portanto, a necessidade de reformular-se o papel do processo e dos próprios sujeitos processuais — eles devem estar preparados para litigar, mas também para negociar e encontrar uma solução consensual.
Por outro lado, além dos desafios intrínsecos ao procedimento, existe o grande desafio cultural [10]: a população em geral, bem como alguns operadores do Direito, comumente associam a conciliação e mediação uma justiça de segundo escalão. Considerar os meios consensuais “justiça de segunda linha” decorre de um pensamento arraigado de que o Estado-juiz tem sempre melhores condições de resolver os conflitos, dentro da ótica do protagonismo judicial.
Além disso, enxerga-se como fundamento para a adoção da autocomposição uma via para diminuir o congestionamento do Poder Judiciário. É certo que a ampliação da utilização dos meios consensuais trará, inexoravelmente, uma diminuição do tempo de tramitação dos processos e, até mesmo, a desjudicialização de alguns conflitos — os artigos 167, 168 e 169, §2 do CPC/2015, inclusive, remetem expressamente a câmaras privadas de conciliação.
Justificar a adoção dos métodos consensuais para desafogar o Poder Judiciário, entretanto, retroalimenta a ideia de que o acordo é justiça de segunda linha, pois ele serviria para melhorar o funcionamento do Judiciário. Esta pode ser uma consequência da autocomposição, não o seu fundamento.
Enfrenta-se, portanto, o grande desafio da passagem da “cultura do consenso” para a “cultura do conflito” [11], ou ainda, da “cultura da sentença” para a “cultura da pacificação” [12]. É preciso “virar a chave” do pensamento de todos os atores envolvidos na resolução do conflito e prepara-los para tal realidade.
Além da mudança de mentalidade, mostra-se essencial a qualificação técnica para esclarecer dúvidas, verificar a adequação ao caso concreto, prestar assistência jurídica de qualidade e fomentar o diálogo na construção consensual da decisão a ser tomada. É preciso, em suma, empoderar os sujeitos processuais para que possam conciliar.
[1] CRESPO, Mariana Hernandez; SANDER, Frank. Diálogo entre os professores Frank Sander e Mariana Hernandez Crespo: explorando a evolução do Tribunal Multiportas. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em: 15.07.2020, p. 28.
[2] Idem, ibidem, p. 63-64.
[3] A título exemplificativo, em um passado recente podem-se citar a previsão nos artigos 2º, 21 e 22 da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.009/95); o Prêmio “Conciliar é Legal”, promovido pelo Comitê Gestor da Conciliação, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reconhece boas práticas da Justiça voltadas à pacificação dos conflitos; e a Resolução n º 125/2010 do CNJ, que instituiu a Política Nacional de Resolução Adequada de Conflitos.
[4] “O Estado Constitucional é um Estado com qualidades. É um Estado Constitucional Democrático de Direito. Há, nele, duas grandes qualidades: Estado de Direito e Estado Democrático. O Estado de Direito caracteriza-se pela submissão do Estado ao ordenamento jurídico com a finalidade de garantir segurança a seus cidadãos. Por sua vez, a principal característica do Estado Democrático, sem embargo do pluralismo político, está na prévia participação de todos”. CUNHA, Leonardo Carneiro da. O processo civil no Estado Constitucional e os fundamentos do projeto do Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 209, jul. 2012, p. 351-352.
[5] Ada Pellegrini Grinover apontou como “fundamentos da justiça conciliativa: o fundamento social, qual seja, a verdadeira pacificação social, que não se consegue por intermédio do processo jurisdicional, que se limita a solucionar a parcela do conflito levado aos autos, sem se preocupar com o conflito sociológico que está em sua base; o fundamento político, pela participação dos cidadãos que solucionam diretamente suas próprias controvérsias, contando com a colaboração de outro cidadão (o conciliador e o mediador) no papel de facilitador dessa mesma solução; e o fundamento funcional, objetivando diminuir a crise da justiça, pela instituição de instrumentos (ditos alternativos) capazes de desafogá-la”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Mediação paraprocessual. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 95. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em 15.07.2020.
[6] Sobre a interligação entre Estado Constitucional, democracia e princípio da cooperação, conferir texto no Conjur desta autora: https://www.conjur.com.br/2022-ago-15/maira-mesquita-estado-constitucional-principio-cooperacao. Acesso em 20 jun. 2023.
[7] WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e os meios consensuais de solução de conflitos. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012 , p. 88-89. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em 15.07.2020.
[8] CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de reforma do processo civil nas sociedades contemporâneas. Trad. Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo, v. 65, jan.-mar. 1992, p. 132-133.
[9] A título exemplificativo, consultar: NUNES, Thais Borzino Cordeiro. A aplicação dos meios consensuais de solução de conflito em ações envolvendo a fazenda pública no âmbito da justiça administrativa. Revista CEJ. v. 22, n. 74, p. 46–55, jan./abr., 2018; PEIXOTO, Ravi. A Fazenda Pública e a audiência de conciliação no novo CPC. Consultor Jurídico. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-abr-07/ravi-peixoto-fazenda-audiencia-conciliacao-cpc Acesso em 11 jun. 2023; SILVA NETO, Francisco de Barros e. A conciliação em causas repetitivas e a garantia de tratamento isonômico na aplicação de normas. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 240, fev.-2015.
[10] Sobre as dificuldades a serem enfrentadas para a implementação do Sistema Multiportas, conferir: LESSA, João. O novo CPC adotou o sistema multiportas!!! E agora? Revista de Processo, São Paulo, v. 244, jun. 2015, p. 434.
Também sobre a necessidade de os advogados terem mais conhecimento sobre as opções de solução de conflito, e as medidas adotadas nos Estados Unidos para tanto, conferir entrevista com o professor Frank Sander: CRESPO, Mariana Hernandez; SANDER, Frank. Diálogo entre os professores Frank Sander e Mariana Hernandez Crespo: explorando a evolução do Tribunal Multiportas. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 34-35. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em: 15.07.2020.
[11] GRINOVER, Ada Pellegrini. Mediação paraprocessual. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 96. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em 15.07.2020.
[12] WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e os meios consensuais de solução de conflitos. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tânia; e CRESPO, Mariana Hernandez. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 90-91. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf?sequence=1. Acesso em: 15.07.2020.
Por Maíra de Carvalho Pereira Mesquita, mestre em Direito pela UFPE, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil, professora na graduação e pós graduação da Faculdade Damas da Instrução Cristã, defensora pública federal e membro da Câmara de Coordenação e Revisão Cível da Defensoria Pública da União.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24 de junho de 2023, 15h20
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